sexta-feira, 17 de agosto de 2007

O CINEMA EM TRÁS-OS-MONTES

Partindo do princípio que os montes não têm frente nem avesso, é necessário questionar os sentidos que se escondem por detrás da denominação Trás-os-Montes. O primeiro problema que se coloca, admitindo que a designação adjudica aos montes a função de fronteira, é a de saber a partir de que vertente desses montes se atribuiu o nome ao lugar. Se considerarmos que foi o litoral que assim o apelidou, a imagem que se intui é a de uma província remota. Se, pelo contrário, acreditar-mos que o nome foi imposto pela própria região, o que se descobre, do outro lado dos montes, é um país distante. Dúvidas etimológicas à parte, e sendo Trás-os-Montes não centro, mas província, parece certo que o título, vindo de lá do Marão, serviria sobretudo para justificar o sistemático esquecimento a que o território foi sujeito, afastado que sempre esteve tanto do mar como da Europa, à margem da história e dos desígnios nacionais.
O reino maravilhoso de Torga, situado no cimo do país “como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecíveis”, daria porém, nesse seu excelso afastamento, ingredientes para as mais variadas visões. Porque nem sempre a galinha que cantou primeiro é a dona do ovo, a literatura, a etnologia e, mais tarde, o cinema votar-se-iam à conversão dessa irredutível lonjura em recuo analítico para falar sobre a realidade política do país. O distanciamento assim cultivado, não raras vezes às custas da mais exaltada rendição, na linha de Torga, aos encantos telúricos de Trás-os-Montes, decorrerá, com frequência, mais de uma vontade de exteriorização do que de uma genuína curiosidade; revelará mais desse olhar exterior do que do seu objecto; dirá mais sobre o país do que sobre a região, pintada, na maioria dos casos, como um território bidimensional, uniforme, virgem e não poluído, pronto a acolher todo o tipo de projecções.
Se algum cinema se fez na região transmontana, sobretudo a partir da segunda metade da década de 70, é indispensável, para compreender a qualidade e as particularidades desse cinema, pensar tanto Trás-os-Montes no cinema como o cinema em Trás-os-Montes. É pois necessário averiguar que imagens esse cinema produziu, que razões motivaram o seu direccionamento para região e que relações foi, com ela, sendo capaz de estabelecer. Dito de outro modo, se o cinema fabricou uma representação especificamente cinematográfica de Trás-os-Montes, importa apurar a especificidade e o alcance dessa representação. Porque se é próprio do cinema transfigurar aquilo que filma, falta saber se o que é filmado determina alguma transformação no cinema.
Por não constituir um corpus suficientemente coeso (dotado de outras peculiaridades, além da comunidade do espaço de filmagem), por não ser, salvo raríssimas excepções, um cinema indígena (isto é, realizado por pessoas originárias e residentes na região), e por esse cinema nem sempre se enraizar verdadeiramente no contexto local (preferindo não se posicionar face à inexistência de uma tradição cinéfila na região, agravada pela falta de estruturas organizadas de distribuição e exibição), o cinema produzido em Trás-os-Montes não funda uma cinematografia.
Trata-se, por isso, de um cinema, se permitido é propor essa designação unitária, que engloba uma grande diversidade de objectos, com propósitos, concepções metodológicas, modos de interagir com o tecido social e graus de compromisso distintos. Muitas das vezes (e nos piores dos casos), um cinema expedicionário e sem retorno, pronto a atravessar os montes em busca de cenários e figurantes, mais interessado em panos de fundo do que na realidade, pouco disposto a desfazer o exotismo recíproco, da câmara para com o que é filmado e vice-versa, e a devolver in loco um confronto com as imagens: circunstâncias todas elas consonantes com a hegemonia das políticas centralistas e com o desinteresse generalizado da administração local não só pelo cinema, mas por todas as práticas culturais vindas de fora. Só assim se entende que, sendo muitos destes filmes peças incontornáveis da história do cinema português, sejam, ao mesmo tempo, outras tantas páginas em branco da história cultural da região transmontana.
Enquanto alguns realizadores se dirigem, pelas mais variadas razões, para Trás-os-Montes à procura de um território mítico, genuinamente pré-moderno, ignorando as sedimentações do tempo histórico e ocultando todos os indícios de contemporaneidade para, no seu lugar, fazer sobressair uma vernaculidade fantasiosa, outros, empenhar-se-ão em lançar sobre a região olhares mais aprofundados, procurando, com diferentes ambições, desmontar a mitologia. Conjugando perspectivas mais próximas de uma óptica arqueológica – fundamentadas numa atenção particular à espessura da paisagem –, de uma vocação etnológica – atidas à inquirição da solidariedade entre práticas agrárias, rituais, representações e estruturas sociais –, ou de uma abordagem sociológica – votadas à compreensão e contextualização dos fenómenos sociais na sua interdependência e globalidade –, o cinema fará emergir temas e questões que se repetem de modo recorrente e que servem, não só para caracterizar a região transmontana, como também a amplitude, as limitações e a pregnância do olhar que o cinema foi dirigindo a Trás-os-Montes.
Ao firmar a convicção de que a paisagem pode ser lida, Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro, e Sabores, de Regina Guimarães e Saguenail, são os melhores exemplos de um cinema que se constrói a partir da interrogação sobre os meios de que dispõe para, a um tempo, figurar e ler a paisagem no seu devir e na sua relação com o humano. Sendo sabido que o cinema propõe uma decifração documental do real e não um real decifrado, a demanda de interpretar a geomorfologia à luz do presente, conduzirá, tanto os primeiros cineastas como os segundos, a pensar as transformações da paisagem em estreita relação com as remodelações económicas e sociais ocorridas durante o século XX. Embora recorrendo a estratégias cinematográficas distintas – António Reis e Margarida Cordeiro, à criação de situações ficcionais; Regina Guimarães e Saguenail, à recolha de depoimentos e de imagens documentais –, os dois filmes atribuem, com trinta anos de distância, a modelação da paisagem transmontana ao mesmo tipo de factores naturais e humanos. Se os rios são, por excelência, os elementos estruturantes do espaço geográfico, tanto ao nível paisagístico como administrativo, a erosão populacional, por um lado, e a mecanização da agricultura, por outro, foram, nos últimos cem anos, os principais agentes no redesenhar do território: como é referido em Sabores, a paisagem transmontana de hoje é recente. Por isso, ao voltar-se para Trás-os-Montes à procura de um ambiente imutável e tradicional que confirmasse as ideias estereotipadas de uma longínqua ancestralidade – não é por acaso que todos os filmes passam ao lado dos núcleos urbanos e evitam as “casas de emigrante” –, o cinema não conseguiria, porém, escapar à modernidade da paisagem.
Em permanente reconfiguração histórica, mas também sazonal, a paisagem parece, contudo, perpetuar uma matriz invariável que, inscrita nessa eterna metamorfose, se lê como repetição e antiguidade. É essa regularidade que tanto em Trás-os-Montes como em Sabores servirá de indicador para, com base nas imagens, descobrir e analisar a circularidade em que se conformam paisagem e práticas humanas e, desse modo, pensar o cultural e o natural como termos de um mesmo processo de permanente reconversão. Privilegiando uma observação do real através da imagem – proposição que faria surgir em Portugal alguns dos primeiros exemplos da versão cinematográfica da antropologia visual – o cinema dedicaria um interesse especial a todo o tipo de representações (objectos, rituais, contos, cerimónias) por aí se presentificarem memória e regulamentação social, numa relação de síntese com a história das traduções humanas da paisagem. Para aceder à paisagem em toda a sua complexidade não bastaria escolher um ponto de vista e apontar as objectivas aos montes: o enquadramento precisa de ser enformado pelos referentes culturais. Se a paisagem pode ser lida, o cinema não contemplativo depressa compreendeu que só através das representações poderia aceder ao seu significado.
Filmes como Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira, Máscaras, de Noémia Delgado e Covas do Douro, de Tiago Afonso, procurarão descodificar e simultaneamente investir de sentido os ritmos da paisagem em confronto com os rituais colectivos que aí se realizam. Em Acto da Primavera, a reflexão paisagística incide sobre a importância matricial dos ciclos naturais na sua transposição para a narrativa religiosa (fazendo assim coincidir as estações do ano com as ideias bíblicas da morte e do renascimento); em Máscaras, a contextualização sócio-económica dos rituais que, em Trás-os-Montes, incorporam mascarados andará a par da integração dessas figuras na paisagem; em Covas do Douro, por seu turno, a paisagem, moldada à imagem do humano, deixará de ser arquétipo ou espaço de inscrição para passar a ser produto simbólico do trabalho.
Realizada em estrita comunhão com a paisagem, uma representação popular do «Auto da Paixão» serve a Oliveira para discorrer sobre a forma como o teatro e, de um modo diferente, o cinema estabelecem e interpelam o espaço cénico e o integram na dramaturgia. Se, instituindo uma conformidade de espaço e representação, o teatro tem a capacidade de controverter a paisagem, colocando-a ao serviço das exigências narrativas, o cinema, dispondo de uma aptidão documental e de uma maior elasticidade focal, consegue, simultaneamente, dar conta da construção teatral e da transfiguração do espaço. Instaurando uma mise en abîme entre diferentes níveis de representação, teatrais e cinematográficos, Acto da Primavera faz participar a paisagem na alegoria cristã da ressurreição, ao mesmo tempo que figura, num travelling, a transição do espaço real (Trás-os-Montes) para o espaço ficcional (a Samaria). Noutros moldes e com outras implicações, o estratagema seria repetido por João César Monteiro quando, em Os Dois Soldados, converte, pelo enquadramento, a paisagem de Trás-os-Montes em savana africana, ou, em Silvestre, a desterritorializa, imobilizada em grandes impressões fotográficas, para, em estúdio, recriar o ambiente intelectualizado de um conto tradicional. Paisagem-representação que será diferentemente tratada por Tiago Afonso, dissociando, pela montagem, as imagens da sua dimensão descritiva para concentrar num mesmo plano conotativo as vinhas do Douro, o pisar das uvas e os rostos dos trabalhadores; ou por Ana Miranda, em Pelo Buraco da Chave, onde a paisagem como separador pontua as fases do trabalho de uma tecedeira, salientando a sua reclusão.
Assumindo o encargo de decifrar a paisagem, o cinema viria a demonstrar que não há leitura sem reescrita. Sem precisarem de se perder nos abismos da subjectividade, alguns dos cineastas que operaram em Trás-os-Montes, muito particularmente o casal Reis/Cordeiro, perceberam que, apesar de implicar um corte e uma redução ao enquadramento, toda a representação da paisagem redobra, pela contingência da reprodução e pela conversão em discurso, a sua indomável multiplicidade. Por isso, o facto de uma paisagem no cinema não ser nunca apenas uma paisagem, coloca alguns problemas às abordagens que se pretendem mais objectivas.
Sendo certo que o cinema não pode esconder-se por detrás de uma suposta transparência da imagem para alcançar a neutralidade do simples testemunho etnográfico, ignorando a força compelativa da câmara e recusando a dimensão interpretativa que a mera fixação de um ponto de vista impõe, os cineastas de vocação antropológica assumiriam posturas bastante divergentes quanto à idoneidade e isenção da mediação cinematográfica no que toca à transcrição do real. Interessados na prevalência do comunitarismo em zonas remotas de Trás-os-Montes, autores como António Campos e Ricardo Costa focalizar-se-iam em certas aldeias para, através da sua realidade específica, reflectir sobre diferentes modelos de organização económico-social e pensar as assimetrias entre o litoral e o interior do país. Falamos de Rio de Onor, de António Campos, e Longe é a Cidade, de Ricardo Costa, dão, respectivamente, conta do quotidiano e dos problemas relatados pelos habitantes de Rio de Onor e da Moimenta, aprofundando e tentando compreender, numa escala global, o isolamento, a autonomização e a extinção anunciada dessas micro-realidades. Para isso, e patenteando (ou ocultando), de modos diferentes, quer as ilações ideológicas e discursos autorais, quer a objectiva interferência da câmara nas comunidades retratadas, as abordagens de António Campos e de Ricardo Costa desenvolver-se-ão num ténue equilíbrio entre a aproximação e a diferenciação do comunitarismo e do comunismo, ora acentuando, pelo discurso directo e individuação dos habitantes, o carácter personalista que distingue o primeiro do segundo, ora querendo destacar, pela organização dos meios de produção e dos regimes de propriedade, aquilo que os aproxima. Enquanto em Falamos de Rio de Onor o cinema está ao serviço da desconstrução dos mecanismos através dos quais se legitimam e sustentam mutuamente os diferentes poderes (político, religioso e científico) na manutenção de uma determinada ideia de comunitarismo e na sua recondução a uma função reguladora da ordem social, em Longe é a Cidade constatam-se, com algum desgosto, as contradições e remodelações dos costumes comunitários, nem sempre coincidentes com o que se espera encontrar. Num caso como no outro, o cinema (esse consumado visitante estrangeiro) fica à espera que os seus interlocutores deixem de se sentir na obrigação de lhe responder com a tipicidade que ele parece procurar. Pretende, desse modo, fazer aparecer uma verdade que, só podendo ser vista à distância, venha juntar-se a essa outra verdade que obriga o cinema a ser tão exterior quanto participante no registo daquilo que se lhe apresenta como realidade. É a fixação desse ponto de vista exterior (cúmplice, mas afastado) que permite, em Margens, de Pedro Sena Nunes, mostrar e tornar evidentes os sucessivos equívocos em que se constroem as relações dos habitantes da aldeia de Chelas com as administrações local e central.
Noutros filmes, menos condicionados por preocupações documentais, a realidade transmontana serve de inspiração e pano de fundo aos mais variados argumentos que, pese embora a sua multiplicidade, recorrem frequentemente aos mesmos temas e estratégias de cruzamento da história local com a história nacional. As difíceis condições de vida, a Guerra Colonial, as partidas e os regressos da emigração e a asfixia social são assim algumas das questões que alimentam as histórias do cinema de ficção realizado em Trás-os-Montes. Terra Fria, de António Campos, relata a miséria de um casal dos anos 40, residente na zona de Montalegre, para pensar os motivos da emigração e da despossessão que está na base de todas as formas de exploração. A Sombra dos Abutres, de Leonel Vieira, conta a história de um mineiro empenhado na luta laboral e, por isso, perseguido pela PIDE, para quem a fuga de Portugal é a única maneira de escapar à repressão do regime salazarista. Em Pedro Só, de Alfredo Tropa, a vida errática de um vagabundo serve para discorrer sobre alguns dos factores de coesão social (a família, a religião, o trabalho) em que se sustenta o Estado Novo. Matar Saudades, de Fernando Lopes, usa o regresso de um emigrante à aldeia natal para pensar as causas e as consequências dos diferentes tipos de migrações que marcaram o século XX português e ainda as modificações ocorridas no país ao longo dos dez anos que se seguiram ao 25 de Abril.
Profundamente diversos, quer em termos estéticos, quer no que se refere às ambições políticas e ao nível de comprometimento com a realidade, estes filmes convergem numa mesma reflexão acerca do salazarismo e da passagem do antigo regime à democracia, situando a acção em Trás-os-Montes; não para aí se deterem, em profundidade, nas características particulares da região, mas para com ela significarem todo o interior do país. Província mais afastada de Lisboa, Trás-os-Montes torna-se assim sinónimo de pobreza, arcaísmo, isolamento, desertificação e demais condicionalismos sócio-económicos que definem uma boa parte do país rural, tido pelo cinema para figurar o “país real”.
No sentido oposto à orientação realista destes filmes, empenhados em retratar e questionar a paisagem social com base em dados objectivos e a partir de histórias verosímeis (estabelecendo, nessa medida, critérios de coerência histórica e narrativa, conseguidos, muitas vezes, à custa da secundarização das contingências formais), cineastas como João César Monteiro ou António Reis e Margarida Cordeiro desenvolverão abordagens menos reguladas por esse tipo de parâmetros mas, nem por isso, menos interessadas nas problemáticas sociais. Nestes autores, o pensamento sobre a realidade parece não poder separar-se do pensamento sobre as formas: a pretensão de o cinema divisar o real (consubstancial que este é ao discurso) tem de ser directamente proporcional à radicalização da linguagem cinematográfica e não apenas decorrente de uma concentração romanesca de acções individualizadas ou do estreitamento numa minúcia descritiva.
Com diferenças fundamentais, éticas e estéticas, o olhar que César Monteiro e o casal Reis/Cordeiro dirigem a Trás-os-Montes assenta, invariavelmente, na recontextualização e metaforização de elementos etnográficos e paisagísticos, confrontados com textos das mais variadas proveniências e com situações ficcionais, tendo sempre em vista um alargamento do horizonte de referência e uma amplificação das possibilidades significativas. Considerando que texto e imagem se potenciam mutuamente e que o discurso cinematográfico, produto de dois movimentos simétricos (a dilatação das potencialidades evocativas através da contracção na imagem justa), não deve submeter-se aos padrões da antropologia, do romance ou da reportagem, estes cineastas procurarão entender e representar Trás-os-Montes por interpostas vias, mas com os meios específicos do cinema.
Na senda da reflexão acerca das venturas e desventuras da portugalidade, aspecto que caracteriza e unifica toda a obra de João César Monteiro como um longo comentário político centrado na vivência da nacionalidade, os quatro filmes em que o autor versa sobre Trás-os-Montes, realizados no período subsequente ao 25 de Abril de 1974, são quatro modos distintos e complementares de fazer um balanço velado da Revolução, dos seus resultados e das promessas da democracia. Enquanto Veredas e A Mãe focam as assimetrias entre o Norte e o Sul do país (acentuadas pela falência da reforma agrária) e Os Dois Soldados pensa o fim da Guerra Colonial (com o regresso dos soldados e a passagem do pós-colonialismo ao neo-colonialismo), em Silvestre observa-se o fim das tensões ideológicas entre capitalismo e comunismo, sob o manto reconciliador da integração de Portugal na CEE. Cruzando contos tradicionais, excertos de Ésquilo, textos escritos em parceria com Maria Velho da Costa e relatos populares com uma representação idealizada da paisagem e das gentes transmontanas, os filmes de César Monteiro forjam um universo fantasioso, de pendor surrealista, em que a mais extravagante das histórias é passível de uma leitura política.
Revelando outro tipo de preocupações, mais afectas à interrogação filosófica do que à crítica, António Reis e Margarida Cordeiro fazem convergir num mesmo plano cinematográfico análise materialista e extrapolação metafísica. Os três filmes realizados em parceria por estes autores, todos eles rodados na região de Trás-os-Montes, preconizam um cinema intelectualista e não narrativo que, propondo uma revisão das concepções de realismo, do estatuto da representação e das propriedades plásticas e sígnicas da imagem-codificação, nega a aproximação objectiva à realidade em favor da objectividade das ideias. A um tempo suporte e objecto de uma mediação conceptual, a paisagem transmontana – compreendida em toda a sua magnitude física, histórica e cultural – é, no cinema de Reis e Cordeiro, matéria e molde de um sistema de pensamento e de uma estruturação pela linguagem. Num crescendo de complexidade, Trás-os-Montes, Ana e Rosa de Areia conjugam um avolumar de referências literárias com uma progressiva depuração diegética. A colisão da palavra e da imagem responde assim a uma redução essencialista que, ao procurar fazer coincidir as leis do universo e as leis do cinema, procura, afinal, os princípios de uma verdade poética.
Concluída a revisão sumária dos filmes a apresentar em A Reposição, constata-se que aquém e além das singularidades autorais, a pluralidade de abordagens cinematográficas da região transmontana contrasta com uma certa uniformidade de motivos. Com efeito, longe de multiplicar os pontos de vista sobre Trás-os-Montes, procurando ventilar estereótipos e produzir representações contrárias ao imaginário corrente, muitas são as vezes em que, buscando o que já conhecem, os cineastas se rendem a imagens prontas a consumir. Não será, por isso, de estranhar que, pelas mais variadas razões e circunstâncias, em muitos dos filmes se repitam as panorâmicas sobre os montes, se escolham as mesmas paisagens com os mesmíssimos enquadramentos, se privilegiem as mesmas aldeias, se registem os mesmos rituais, se filmem as mesmas pessoas, objectos e situações, de tal modo que se torna possível traçar um roteiro temático e geográfico da passagem do cinema por Trás-os-Montes.
Mas que cinema é hoje possível? Depois de um cinema que se quis impuro e procurou contaminações com o teatro, a poesia e a pintura, que recusou ser indústria e, em crise, se voltou para dentro à procura de uma identidade, está pois por fazer esse outro cinema que, remontando através do mesmo itinerário, procure desviar-se dos lugares-comuns e desmontar a regularidade da região cinematográfica para aí se perder em novas maneiras de ver e de mostrar. Um cinema que chegado, com o país, a uma idade maior, não receie a descoincidência e seja capaz de desvendar as imagens que se escondem por detrás das imagens e, eventualmente, dos montes.

António Preto

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